As primeiras manifestações gráficas do mundo que conhecemos foram realizadas durante o período denominado Paleolítico, entre sessenta e trinta mil anos atrás, pelas mãos de nossos ancestrais.
Os homens primitivos* utilizavam formações rochosas para se abrigarem das intempéries e se esconderem de predadores. Nas rochas, também encontravam um bom suporte para se expressarem através de gravuras e pinturas rupestres, dando origem às primeiras imagens.
Para esses povos, as imagens eram, supostamente, entendidas como algo poderoso para serem usadas, e não para serem contempladas, o que explicaria o fato de se encontrarem sobrepostas e justapostas em diversos sítios arqueológicos.
Antropólogos que realizaram pesquisas em sociedades primitivas ainda isoladas no século XIX, encontraram relações entre as manifestações ritualísticas destas, e as imagens perpetuadas nas rochas há milhares de anos. Com base nessas constatações, se deduz que os primitivos acreditavam numa forte correspondência do ser vivo com a sua imagem, considerada a representação de sua alma.
Isso significa que, ao representar uma cena de caçada, por exemplo, nossos antepassados caçadores-coletores estavam antecipando e assegurando o sucesso da empreitada, o que garantiria a alimentação daquele grupo. Se o animal fosse abatido pelos homens do grupo na imagem ritual, com certeza sucumbiria ao poder do homem durante a caçada real. O homem, representado na cena como o caçador bem sucedido, projetaria o mesmo sucesso na batalha real contra a fera.
Cena de caça na cova dos cavalos, Valltorta, Província de Castellón, Espanha
Ora, diante de um instinto tão ancestral como a crença no poder das imagens, não seria essa uma característica que ainda carregamos em nosso DNA? Será que não continuamos a delegar às imagens um poder sobrenatural, aquém de nosso controle racional?
Um exemplo prático é a crença no poder das imagens no catolicismo popular, ainda vigente. Porém, não é só no universo do sagrado que o crédito nas imagens atua hoje em dia. Imagens midiáticas também revelam que aquele homem primitivo ainda habita dentro de nós.
Vamos observar essa imagem:
Nosso homem atual não precisa ter sucesso na caçada, mas é desejável que tenha êxito na selva de pedra para sobreviver. As imagens construídas de um homem de sucesso levam quase 100% da humanidade a acreditar que uma pessoa vitoriosa condiz com o que está representado nelas, ou seja, a imagem ainda detém o poder de projeção do desejo de sucesso.
Mais que isso: se meu fenótipo não está representado nas imagens correntes de êxito, possivelmente não vou me projetar naquela posição. Para haver projeção, é preciso acontecer uma identificação.
Portanto, é preciso que eu me veja representada nas imagens de sucesso para poder projetar, assim como meu ancestral primitivo, meu sucesso na vida real. Esse crédito instintivo na imagem parece conceder uma força, uma certeza do êxito, pois a imagem antecipa minha vitória. E é exatamente por isso que a representatividade importa.
Quando falamos sobre a importância da representatividade de todos os grupos sociais em imagens de sucesso e felicidade, estamos trazendo todo esse universo ancestral à tona.
Um estudo organizado por Noemi Kon, Maria Lúcia da Silva e Cristiane Abud diz que “para muitos negros, o fato de ser negro é vivido com muita dificuldade, já que foram introjetadas imagens negativas, produzidas pelo poder discriminatório.”
Da mesma forma, as imagens femininas de beleza idealizada, empurram milhares de mulheres à tratamentos estéticos sacrificantes e desnecessários, como se uma mulher normal não pudesse ter acesso à uma vida bem sucedida.
Uma pessoa que, desde a infância, não consegue se projetar em imagens positivas, nem encontrar-se identificada em representações de felicidade e bem estar, tem sua confiança abalada. A não ser que consiga libertar-se por meio de uma boa orientação emocional e agir com racionalidade, permanecerá aprisionada ao poder da imagem.
Mas é possível escapar da influência – tanto positiva, quanto negativa – das imagens. Exige racionalismo e uma boa estrutura psíquica para trazer à tona a conscientização e o autoconhecimento. Isso acontece porque, apesar do apelo sedutor das imagens, que atuam pelo viés da semelhança como se fossem espelhos, elas são superficiais.
A semelhança está ligada ao aspecto exterior, à superfície da imagem. Pela imagem não é possível alcançar a essência do ser representado, como acreditavam os homens primitivos.
Um exemplo prático e atual, consiste no tanto que se discute a pretensa felicidade nas redes sociais. Ora, todos sabem que pessoas não são felizes o tempo todo. No entanto, muitos indivíduos são afetados pela “grama mais verde do vizinho”, achando que suas próprias vidas são um desastre.
Por outro lado, se eu sei quem sou na essência, não há imagem – positiva ou negativa – que seja capaz de influenciar minha atuação no mundo. Só o autoconhecimento pode trazer uma imagem interna autêntica de sucesso, pois que vinculada às mais genuínas necessidades pessoais. E uma coisa, temos que reconhecer: as necessidades do homem primitivo ao construir suas imagens eram bastante genuínas!
Ao contrário do senso comum e superficial das imagens midiáticas, para muitas pessoas o êxito não está no mundo corporativo, nem nas grandes metrópoles, nem no carro com cheirinho de novo, tampouco em objetos de marcas específicas. Somente pela via do autoconhecimento é possível libertar-se das imagens de sucesso impostas pelo mercado de consumo.
Assim, encerro esse texto convocando todos a procurarem, dentro de si, sua própria imagem de sucesso, o seu ideal de felicidade e bem estar, sem pensar no mercado consumidor ou no julgamento alheio.
Essa é a minha imagem interna de sucesso! E a sua, qual é?
* “Chamamos a esses povos ‘primitivos’, não porque sejam mais simples que nós – os seus processos de pensar, com frequência, são mais complicados que os nossos – mas por estarem mais próximos do estado em que, num dado momento, emergiu a humanidade.”, Ernst H. Gombrich (1909-2001), historiador de arte austríaco
Agradecimento
Profa. Dra. Rosana Pimenta, Coordenadora do Curso de Dança da Universidade Federal de Viçosa
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COLI, Jorge. O invisível das imagens. In.: Artepensamento IMS. Coleção Muito além do espetáculo. Disponível em: < https://artepensamento.com.br/item/o-invisivel-das-imagens/ > . Acesso em: 28/08/2020
GOMBRICH, Ernst H. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 1999.
JAFFÉ, Aniela. O simbolismo nas artes plásticas. In.: JUNG, Carl G. (et al.). O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
KON, Noemi Moritz; SILVA, Maria Lúcia da; ABUD, Cristiane C. O racismo e o negro no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 2017.
Carolina Lopes é artista visual, designer, redatora e arte-educadora. Além de desenvolver trabalho autoral em arte, atua em projetos de formação continuada para professores da rede pública no Instituto Brasil Solidário, Oscip sediada em Fortaleza. Atualmente, elabora materiais para formações EaD em Arte.